Viajar é muito útil, faz a imaginação trabalhar. O resto não passa de decepções e cansaços. Nossa viagem, a nossa, é inteiramente imaginária. É essa sua força.
Ela vai da vida à morte. Homens, animais, cidades e coisas, tudo é imaginado. É um romance, nada mais que uma história fictícia. Diz o Littré, que jamais se engana.
E além disso todo mundo pode fazer o mesmo. Basta fechar os olhos.
É do outro lado da vida.

Louis-Ferdinand Cèline


As paisagens de Uiler Costa são um convite a olhar com intenção, vontade e entrega. Paisagens plácidas e serenas ou intempestivas e densas, registram movimentos de expansão. Composições cuidadosas e belas que causam estranhamento: o quê, afinal, estamos vendo? Esta incerteza nos convoca a aprofundar a experiência e nos situam em sua temporalidade dinâmica, que nos lembram que as marés, assim como a respiração, falam sobre nossa própria impermanência. Nascemos e morremos e voltamos a nascer a cada instante.

Hoje sabemos que toda a matéria que existe no mundo – incluída a matéria que nos conforma - é apenas aparentemente sólida, composta por partículas subatômicas e espaços vazios. Estas partículas tampouco são sólidas: a duração da existência de cada uma delas é menor do que um trilionésimo de segundo. Elas surgem e desaparecem constantemente, como um fluxo de vibrações. 

É do mundo, portanto, este caráter ambíguo. Os elementos não carregam significados estáticos. A água, ora tranquila na sua presença fugaz – as imagens são realizadas num momento específico, durante a Sizígia, ponto máximo da maré baixa – também está presente em seu aspecto mais perturbador e misterioso, o das profundezas, do abismo. A terra, elemento normalmente associado à passividade e estabilidade, é móvel e se adequa ao ritmo da água. O ar se apresenta como indício, ao impulsar as pequenas ondas que darão forma aos desenhos na areia ou na superfície/pele da água - que se encrespa ou ondula em resposta ao sutil toque aéreo. Aqui, as imagens carregam um significado conceitual profundo e os sentidos são intensamente convocados.

Para alguns pensadores da contemporaneidade, a inteligência humana, sobretudo nas suas formas contemplativas e científicas, é um “êxtase do audiovisual” (Sloterdijk, 2014). O poder de representação é instaurado, primeiramente, pela visão, que media nossa abertura ao mundo, nossa forma de estar no mundo. Penso nisso quando reflito sobre os motivos de Uiler Costa para o voo em busca da beleza e da liberdade, esta viagem que percebo como um rito iniciático, mítico, presente em culturas tão diversas como a da Grécia antiga ou dos povos indígenas do Brasil: o herói que parte numa jornada em busca de liberdade ou de algo que trará felicidade ao seu povo. É de uma vida sem sentido que Uiler se aparta; recusa uma situação opressora, uma vida inautêntica, que mantém funcionando a engrenagem de uma máquina porque sabe, intimamente, que é necessário resgatar a humanidade de cada homem. 

No depoimento do artista, a certeza de que um outro mundo existe e é possível, mais belo e não afetado pela ruína contemporânea, num lugar apartado do nosso cotidiano, encontra precedente na história da arte, na ideia da arte como promessa de felicidade. 

O ato poético – que na obra de Uiler não se resume a estas fotografias, e sim em todo um processo que se inicia no deslocamento, na viagem – revela aquele espaço da intimidade ao qual se referia Bachelard, e que nos convoca, a partir desta visão da imensidão, a um exercício da imaginação e a um jogo que o filósofo francês chamava de “dialética do grande e do pequeno”. Uiler Costa nos convida a fazer parte deste jogo poético, imaginativo, para descobrir que a beleza e a imensidão que ele retrata também se encontra dentro de nós mesmos.

Stella Carrozzo

Artista visual e curadora